sexta-feira, 29 de outubro de 2010

coisas simples


Uno se despide insensiblemente de pequeñas cosas
lo mismo que un árbol que en tiempo de otoño muere por sus hojas
al fin la tristeza es la muerte lenta de las simples cosas
y esas cosas simples que quedan doliendo en el corazón
Un vuelve siempre a los viejos sitios donde amo la vida
entonces parece como estan de ausentes las cosas queridas
por eso muchacha no partas ahora soñando el regreso
que el amor es simple y a las simples cosas las devora el tiempo
Demorate aquí en la luz mayor de este mediodía
donde encontrarás con el pan al Sol la mesa tendida
por eso muchacha no partas ahora soñando el regreso
que el amor es simple y a las simples cosas las devora el tiempo


mãe...






... quando tu eras pequenina, 
o mundo era  a preto e branco?






refaço o caminho e vejo-o, de facto, retratado apenas e só em tons de cinzento. quero convencer-me que era da máquina que não chegava para mais, que essa era a tecnologia da época em que as fotografias a cores ainda não eram assim tão comuns e que o meu pai fazia o melhor que podia e sabia quando captava, a preto e branco, os pinhais e as casinhas em pedra das Lages. quero crer as cores já existiam, mesmo que ainda não fosse possível fixá-las. que quando eu era pequena o mundo era a cores, sim, Luisinha, e que já continha todas as cores que existem em nós. do verde ora manso ora bravo do vento ao azul abaulado e turquesa do céu, do recorte acastanhado das serras ao rubor dos poentes, do ouro das searas de trigo magenta aos pomares em laranja e vermelho-maçã, da brisa lilás do crepúsculo ao brilho de  prata das estrelas, o mundo já era a cores quando eu era pequena, sim, Luisinha e as fotografias de mim pequenina, que vês espalhadas em casa da avó e que me mostram apenas a preto e branco não dizem nada da minha infância nem a repetem como dela me lembro, com as casinhas de pedra das Lages assim, iluminadas por Deus, mesmo quando eu fugia, já nessa altura, para debaixo das sombras...


quarta-feira, 27 de outubro de 2010

hoje, quando as deitei,

estavam as duas preocupadas comigo. mais mansas do que é costume, sem exigências quase nenhumas, solícitas e oferecendo-me doses extra de mimos e beijinhos melosos.
   coitadinha de ti, mãe
dizia a Luísa, ao mesmo tempo que me enchia de festas
   essa conólostopia que vais fazer amanhã deve ser mesmo horrível! 
em jejum desde a uma da tarde, quase não tive forças para rir. muito menos para a corrigir e aí talvez já não por falta de forças, mas porque adoro quando a Luísa inventa palavras. sosseguei-a.
  não, Luisinha, não é horrível. a mãe vai estar a dormir e não vai sentir nada.
e foi assim que a conversa passou da conólostopia para o não sentir nada.
  vão dar-te uma anestesia, não é, mãe?
perguntou a Madalena.
  sim, vão pôr a mãe a dormir e a mãe não vai sentir nada.
  e como é que é? vai doer? já te deram alguma?
quis saber a Luísa.
  já, Luisinha, já levei várias anestesias e não dói mesmo nadinha.
  pois, para tirar os bebés da barriga é preciso estar muito anestesiada
opinou a Madalena.
pela enésima vez, expliquei-lhes que, em casos normais, as mães não levam anestesia nenhuma e os bebés saem pelo pipi, e não pela barriga.
   mas, no caso da mãe,
continuei, com paciência,
   tiveram os quatro de sair da barriga por cesariana e por isso a mãe precisou de levar anestesia.
   então estavas a dormir quando nascemos?
perguntou a Luísa.
também já lhes contei isto não sei quantas vezes, mas parecem esquecer-se.
  quando foi da Francisca e do Lucas, sim, a mãe estava a dormir. mas com vocês as duas a mãe teve a sorte de poder estar acordada, porque a anestesia era só da barriga para baixo.
  e tu viste tudo?
  não, Luisinha, não vi quando cortaram, se é isso que queres saber... mas vi-vos assim que nasceram. eram tão queridas! mesmo pequenininhas... e pus-vos logo aqui, em cima do peito, para vos dar um beijinho.
riram-se as duas e foi então que veio à baila a história da sementinha.
  mãe, pode acontecer a minha sementinha já estar na tua barriga antes de o pai Pippo morrer?
  não, filha, não pode.
  porquê?
  porque a tua sementinha é de outro pai, Madalena.
  mas já podia lá estar e tu e o pai não saberem...
  não, não podia...
ficámos as três em silêncio uns instantes e foi então que ela disse
  mas no teu coração está desde sempre, não é, mãe?

e estão mesmo! no meu coração, desde sempre, está não só a sementinha da Madalena, mas a da Francisca, a do Lucas e a da Luísa. pressinto até que tenham chegado antes de os pais as terem vindo plantar no meu ventre e que nos tenhamos escolhido, para ser mãe e filhos, quando ainda só éramos estrelas.
com uma longa noite de jejum pela frente,  mais frágil do que é costume e com a tal da conólostopia a querer visionar-me as entranhas, é deste amor visceral pelos quatro que também me alimento... hoje e sempre.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

falar com os mortos

só pode ser coisa de quem não está bom da cabeça!, diz quem ainda não descobriu que, do outro lado do véu, os 'mortos' estão vivos e que por isso é normal que vivos e vivos conversem, nem sequer em tom mórbido e sobre assuntos funestos, mas ligeiramente e tantas vezes sobre coisas prosaicas, banais.  se assim não fosse, como seria possível estarmos aqui os dois à conversa? e reparo que é a primeira vez que te trago aqui dentro,
  e então, gostas do blogue?
logo vi que gostavas, ainda que, e ao contrário de mim, já não estejas nessa humana idade das dúvidas, mas na posse de toda a verdade e não, não levo a mal que não contes, 
  que graça teria saber toda a verdade neste momento? 
a verdade, aqui onde estou, é que há já algum tempo que não conversava contigo, admito até que às vezes te evito, com medo de que precises de desviar-te dos teus afazeres luminosos para me ouvires, mas hoje foste tu quem veio procurar-me e se instalou e estive quase para te perguntar
  não queres sentar-te?
e a puxar do banquinho que costumo oferecer às visitas, como se tu fosses visita
  claro que és da casa
e tu prontamente ocupando o lugar que sempre ocupaste, velando por mim para que nenhum mal maior me possa atingir, tu ao meu lado, dentro de mim, em toda a parte, afinal, que essa é a grande vantagem dos vivos do lado de lá, estarem em todo o lado e só virem cá quando sentem vontade de conversar e assim e reparo que te ris
  estás a achar graça, já percebi
não é novidade nenhuma, rirmos os dois durante as nossas conversas, tu mais sarcástico, eu mais mordaz, que bom estares aqui
  é giro o meu blogue não é?
também achei que ias gostar, caso contrário não tinhas chegado precisamente na altura em que me preparava para escrever uma 'nova mensagem' e reparo que já percebeste por que razão pus como título 'falar com os mortos' - e que não tem nada a ver com o facto de estarmos aqui, os dois vivos, nesta conversa que é tudo menos de quem não está bom da cabeça - e porque foi que escolhi a fotografia do anjo de cemitério para a 'ilustrar'
  não, não digas porquê, deixa que fique só entre nós
e daqui a uns dias veremos se foi ou não boa ideia, tendo em conta que o objectivo era um só, mas que nem sequer é importante para esta nossa conversa
  pois é, que bom estares aqui, chega a parecer quase um sonho!
e lembro-me, não sei porquê, dos nossos sonhos aos vinte, vinte a tal anos, casar e ter  filhos, uma varanda com vista para o Tejo, comprar um pequeno terreno na ilha do Sal, em Cabo Verde, e passarmos lá férias, lembro-me dos pesadelos aos trinta e dois, depois de nos terem atropelado esses sonhos, lembro-me de me dizeres 
  eu aposto em ti mas é aos quarenta!
assim, tal e qual como disseste agora mesmo,
  eu aposto em ti mas é aos quarenta!
e aqui estou eu, quarentona, 
  já viste?
meia vida cumprida, se acreditar que a média humana ronda os oitenta, dois filhos quase criados e outras duas que para lá caminham, ainda e sempre cheia de dúvidas, mas isso faz parte da vida, tranquilamente à conversa contigo numa noite de outono, e ainda há quem diga que falar com os mortos é coisa de quem não está bom da cabeça, imagina,! como se realmente tu tivesses morrido naquele dia de verão e não me restasse outra opção senão a de ir ao cemitério pedir aos anjos de pedra para te mandarem saudades, sempre que as saudades de falar contigo viessem à tona...
  que disparate, não achas?

patchamama

suar dentro das entranhas da terra é um ritual ancestral e xâmanico que purifica o corpo e o espírito.
a primeira vez que entrei numa 'cabana do suor' - uma espécie de iglo feita com paus e forrada com panos - foi em fevereiro de 2006.
lá fora, em plena serra algarvia, fazia um frio de rachar e o inverno parecia ter vindo, também, instalar-se dentro de mim. nessa altura, passava por uma crise profunda, a todos os níveis - creio que já era Urano, que iria opôr-se a si mesmo dali a uns tempos no meu mapa natal, a fazer-me um convite e a dizer-me
 deita fora isso tudo que já não te serve!
como em todas as primeiras vezes, sentia algum medo. não temia o calor, nem o escuro da cabana, mas a fragilidade que me consumia baixava as minhas defesas. não fazia a mínima ideia do que iria passar-se lá dentro e o facto de estar numa roda entre estranhos, à frente dos quais iria ter que despir-me, e ao mesmo tempo a sentir que nada em mim circulava, só aumentava a sensação do desconforto.

✻ ✻ ✻

como em todos os 'temazcallis', a cerimónia teve início ao redor da fogueira. dispostos em círculo, começámos por dar graças ao fogo, que nos aquecia naquela gelada noite de inverno, ao mesmo tempo que, em silêncio, pensávamos nas intenções que levaríamos para dentro do ventre da mãe. como se, dali a pouco, a oportunidade que nos ia ser dada de renascermos de novo pudesse alterar muitas coisas nas nossas vidas - sobretudo, nos nossos comportamentos e atitudes.
não me lembro ao certo o que foi que disse em voz alta, já que é sempre em voz alta que expressamos as intenções, para que todos os que fazem parte do círculo possam ouvi-las, mas sei que pedi. pedi tanto... tanto, tanto e tantas coisas! pedir é, afinal, tão humano, não é? pedir paz, pedir amor, pedir luz para o caminho é a prece diária de qualquer ser mortal, que assim tenta livrar-se - ou simplesmente integrar - a dualidade que encarna. pedir que o FOGO derreta os padrões, que a TERRA acolha as sementes e nos dê a colher os seus frutos, que a  ÁGUA dissolva os bloqueios e as emoções negativas, que o AR seja um alento para o espírito... assim pedi eu e pedi isso tudo! na companhia dos quatros elementos, nua e sozinha, despida de máscaras e recolhendo às minhas próprias entranhas, pedi paz e amor e muita luz para o caminho e, sobretudo, coragem para ultrapassar aquela crise profunda em que estava na altura.

✻ ✻ ✻

a intensidade de tudo o que se passou a seguir ficou marcada para sempre - no meu corpo e na minha alma. foram horas em que, esquecida do tempo, numa luta contra o calor que me comia por fora e o escuro que me aflorava por dentro, me desprendi de tudo o que era e me entreguei à mãe terra, como um recém-nascido que não sabe nada das coisas do mundo, mas que se lembra ainda de tudo o que trouxe do céu. lembro-me de estar enroscada, tal como um feto no útero materno, e de ter chamado  baixinho, a chorar, a terra de mãe. e de ela me ter acolhido e me ter abraçado e de só assim ter sido possível suportar tanto suor e tantas lágrimas.
   
✻ ✻ ✻

durante estes últimos anos, repeti o ritual outras vezes e, ontem, pela oitava - número que sempre associo à espiral infinita do movimento do cosmos  - voltei a suar e a chorar nas entranhas da terra.
estava uma noite morna de outono, a lua já não estava tão cheia, mas ainda branca e redonda num céu polvilhado de nuvens e estrelas e, se estou numa 'crise' - e creio que estamos sempre a passar por alguma - a minha é agora de crescimento e de (auto)cura, e já não de  impotência e desespero. não sei se por isso, a minha intenção foi tão clara que não tive uma dúvida quando, em voz alta, a expressei dentro do círculo, de olhos postos no céu e dirigindo-me a Deus
  já pedi tanto, e tantas coisas, e já tanto e tantas coisas me foram dadas ao longo da vida, que hoje venho oferecer-me. a Ti e ao Fogo e à Terra e à Água e ao Ar, para que a cura aconteça, de facto, e curada eu possa Servir na cura dos outros.
posso dizer-vos que foi o temazcalli mais duro, mais difícil e o mais intenso dos oito. e é por isso que me sinto tão grata.

sábado, 23 de outubro de 2010

ando a casar-me

estranha, a expressão? admito que sim. é mais comum ouvir-se dizer 'vou casar-me', 'casei-me', 'sou casada'... mas 'ando a casar-me'? a verdade é que ando. a tentar, pelo menos, que isto de um casamento tem tanto que se lhe diga, tantas voltas e reviravoltas, tantas esquinas e contratempos e, ao mesmo tempo, tantas potencialidades!... a minha sorte é que, desta vez, nenhum noivo espera por mim no altar e o anel que trago no dedo, apesar de ter sido oferecido, foi na condição de ser capaz de assumir um compromisso comigo. é de prata, mas podia ser de latão,  de cobre, de arame ou de outra substância qualquer, já que o mais importante é conseguir 'consubstanciar' corpo e espírito, no sentido mais íntimo, e quase biblíco, do termo: como a presença de Cristo, na Santíssima Trindade, sendo ela mesma. 

pois é, ando a casar-me comigo e a fazer por prometer-me fidelidade, nem sequer até ao fim dos meus dias, mas por toda a eternidade. a jurar amar-me e honrar-me, nas condições favoráveis, mas também nas adversas e a retirar, um a um, todos os véus com que as noivas tapam a cara  e enfeitam cabelos e que, na maior parte dos casos, as deixam às cegas, ou então apenas permitem que vejam o mundo através dos buraquinhos do tule...

não é fácil, creio que é até mais difícil casarmos connosco do que com outro. é muito mais complicado deitarmo-nos todas as noites e sermos capazes de nos abraçarmos sem nenhuma distância ou reserva, mesmo que pareça mais simples ter os braços do outro à nossa espera na cama. é muito mais verdadeiro, embora mais duro, exigirmos de nós fidelidade ao que somos, em vez de andar a morrer de ciúmes com as mentiras e as infidelidades do outro. é muito mais justo dizer 'amo-me' do que andar a cobrar a injustiça de o outro nunca dizer 'amo-te'. é fundamental, é visceral,  eu diria, casar-me comigo, para que um dia, então, me case com outro - se for essa a escolha, se for esse o caminho... (e não tenho uma dúvida de que as Balanças é sempre isso que escolhem e sempre esse o caminho que tomam...)

já me casei duas vezes e sei do que falo. a primeira com tudo a que tinha direito - dia marcado, vestido de noiva, alianças, uma capela com vista para o rio, um coro afinadérrimo e uma homilia lindíssima, um copo de água abundante, uma lua de mel numa ilha, dois filhos maravilhosos e oito anos de um dia a dia de enorme partilha e cumplicidade. um casamento que, desconfio, se não tivesse acabado num atropelamento brutal, acabaria de outra maneira (ou talvez não e tudo o que forem especulações não passam de mera retórica e não cabem aqui...)
o segundo não teve dia marcado, nem alianças, nem padre, nem coro, nem capela, mesmo que tenha tido vista para o rio muitas vezes, sobretudo da cama de onde chegaram mais duas filhas maravilhosas, e que me deu, senão um marido, um amigo fiel. foram mais oito anos da minha vida e o facto de ter partido para eles já não vestida de noiva e de branco, mas de viúva e de luto,  talvez tenha feito toda a diferença - mas, mais uma vez, entro no campo das especulações e não quero. separámo-nos há já algum tempo, mas fico contente por termos sabido continuar juntos, partilhando em paz o que nos é comum e assim evitando cair em guerras antigas. 

se o provérbio está certo e 'não há duas sem três', hei-de voltar a casar-me de novo. não faço ideia com quem, nem onde, nem como, nem quando, se vestida de noiva ou de cigana,  se numa capela ou no campo ou na praia, se haverá coro ou apenas um mantra dito em silêncio por ambos, se a lua será de mel ou de uma luz ainda mais doce. por mais que neste momento até possa ter sonhos e desatar a fazer mil projecções sobre o futuro, o presente que tenho para me oferecer é só um: casar-me comigo e prometer ser minha para sempre.

amén.

Lua cheia em ♈

em assuntos de astrologia, não sou leiga nem sábia e o pouco que sei é mais intuído do que fruto de estudos profundos. aqui e ali vou lendo umas coisas e aprendendo outras tantas, já fui vezes sem conta ouvir quem realmente percebe a linguagem dos astros falar do meu mapa, eu própria pinto mapas da alma, mas sempre guiada por intuições e por cores, mais do que por definições ou conceitos mentais. afinal, a astrologia é uma linguagem simbólica, onde podemos ver tudo e todos. onde, mesmo sem sermos peritos ou sábios nas coisas dos astros, intuímos do seu movimento as energias que nos dizem respeito e que de nós fazem parte.
uma Lua cheia em Carneiro diz-me respeito, não só porque é nesse signo que a tenho e que, por estar oposta ao meu Sol, em Balança, significa que, quando nasci, às dez e um quarto da noite, estava uma noite de Lua cheia, mas também porque neste momento da minha vida o meu oposto e complementar é Carneiro. sim, Carneiro é sempre o signo oposto e complementar de Balança, mas nem sempre foi o signo do 'meu' companheiro.

hoje, ao ler este texto e a reflexão que propõe, se a isso estivermos dispostos, mergulhei no tal eixo Carneiro-Balança que é, afinal, a relação do eu com o outro. há muitas formas de relacionarmos o eu com o outro. a mais fácil, mais comum e mais tentadora é projectar sobre o outro os desejos e as expectativas que o eu que é nosso transporta e esperar que ele as cumpra. mais cedo ou mais tarde, a frustração de o outro, afinal, ter desejos e expectativas diferentes e não poder, por isso, ajudar a que se cumpram as nossas virá ao de cima. com Saturno neste momento em Balança, as relações que funcionam no pressuposto de que virá um outro fazer-nos felizes para sempre têm os dias contados. a ilusão de que o alívio para as nossas feridas chega em regime de ambulatório pelas mãos de um 'enfermeiro' disponível, gentil, amoroso, impede que se manifeste o dom de curadores que todos nós temos. e o eu tem sempre feridas algures a precisarem de cura, buracos que ao longo dos anos não soube tapar, frinchas por onde a luz escapa, arestas que urge limar. pôr no outro essa responsabilidade é um equívoco a que já cedi muitas vezes. 'anda cá e dá-me colinho e diz que vais amar-me para sempre' é ladainha de belas adormecidas - patetas e alimentadas por anos e anos de contos de fadas - que decidiram que só acordavam quando o princípe viesse beijá-las.

eu dormi muito tempo esse sono encantado e até tive alguns princípes que me beijaram  e que prometeram amar-me para sempre, é verdade. e, afinal, tudo em mim continuava dormente. as feridas, ainda, todas latentes, os buracos à vista e eu a escapar-me por eles, a afundar-me e sem querer sair lá de dentro para não ter de enfrentar o mundo da Alice, de pernas para o ar, sem as maravilhas  - e sobretudo os maravilhosos - que julgava merecer. 
mas a vida não é um conto de fadas e ainda bem que não é. o que não quer dizer que a magia não esteja presente em cada dia das nossas vidas... o perigo é confundirmos magia com ilusionismo e deslumbramo-nos com os seus truques banais. quantas vezes não me deslumbrei  eu com coelhos que foram saíndo de tantas cartolas e não achei que o milagre da multiplicação de lenços de seda a sairem dos bolsos eram a prova provada de que, finalmente, um mágico tinha chegado aos meus braços? quantas vezes não quis entrar no baú forrado de estrelas para que as espadas me trespassassem e eu, afinal, saísse inteira e incólume do seu interior de fundos falsos e outras quimeras? quantas vezes não me entreguei a valetes de copas achando que, com esse trunfo nas mãos, o jogo só podia estar ganho?

ilusão e magia são mesmo coisas diferentes! e não há nenhum jogo, a não ser o dos espelhos - e mesmo esse está cheio de armadilhas e permite um sem fim de batotas, de cada vez que não temos coragem para mudar no eu o que o outro nos mostra, e preferimos esperar que seja o outro a mudar o que nele, afinal, não gostamos de ver. a própria Lua, que esta noite será Lua cheia, em Carneiro, não ilumina o meu Sol em Balança, porque o Sol, ao contrário da Lua, tem sempre luz própria. 

hoje, o desenho que ilustra este texto e que fiz numa altura em que ainda me deixava iludir pelo brilho ofuscante da Lua - quiça pela personalidade esquizóide que alguém com o Sol e a Lua opostos no mapa sempre revela - vem mostrar-me que o eixo que liga o eu e o outro, apesar de contínuo, é feito de etapas, estações e apeadeiros e que talvez nem agora, depois de tanto caminho já feito, as duas espirais possam unir-se para dar origem ao movimento do oito infinito... 
primeiro, é preciso que cada uma seja infinita em si mesma, e inteira, acima de tudo, já que o mito da 'cara metade' é só e apenas outra versão dos contos de fadas. relações assentes na divisão de um ser em metades - tu completas a minha e eu eu troca completo-te a tua - são coisas de telenovela e das tais Belas que adormeceram a vê-las.

talvez eu própria ainda tenha algum sono e outros tantos resquícios de anos e anos de encantamentos, diria que quase genéticos, mas a verdade é que me sinto cada vez mais desperta. bela, mas acordando do sonho infantil das princesas patetas que se enfiam em redomas de vidro e ficam à mercê da chegada dos príncipes. Balança capaz de equilibrar tudo o que em mim não é complementar, mas oposto, tapando os buracos com terra e com ar e com fogo e com água. sarando o que tanto, e ainda, me dói, limando as arestas e ouvindo o meu coração que bate 
e que bate 
e que bate 
e que bate 
e desta vez entrando na dança que me propõe, muito mais do que caindo na ilusão de me agarrar a esse pulsar e lhe contar as batidas, para que encaixe numa qualquer pauta pré-concebida que só serve de banda sonora aos romances dos filmes.

a Lua não se agarra, preenche-se

daqui
quantos quartos de Lua ainda terei de contar para perceber que é só uma? uma só lua que se enche e esvazia como as marés de sal nos meus olhos, até atingir a novidade do escuro e recolher-se ao silêncio?
uma só lua renascendo num traço crescente, crescendo ao relento e curvando no colo o embalo da infância, sentindo que a cada noite que passa preenche mais uma frincha de corpo e dá mais um passo no céu.
aos poucos, a luz torna-se cheia, redonda,
lua de shakti,
lua de fecundidade e prazer, de magias, de branco, de âmbar, das ilhas que aos poucos se encontram para formar arquipélagos ou, simplesmente, baloiçar no mar alto ao sabor das correntes.
não dura mais do que uma noite e logo a seguir emagrece.
aos poucos, também,
- que tudo leva o seu tempo-
e recolhe-se em busca do acto minguante, voltando a atingir a novidade do escuro e a ser lua de shiva.
a lua da transformação.
da solidão.
da cegueira.
do silêncio dos deuses.

o ciclo repete-se noite após noite,
mês após mês,
ano após ano,
toda uma vida.
assim como nos enche, a lua esvazia-nos.
querer agarrá-la é loucura.
mas preencher o vazio em que nos deixa enquanto mingua é ir ao encontro do Sol que escolhemos vir ser nesta vida.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

quando eu era pequena

era quando? e quanto é o tempo que me separa desse tamanho de mim e por que razão me lembrei dele agora? agora e aqui e eu já muito crescida, 
  - ou nem tanto!
aqui e agora e eu ainda menina
  - menina?!
'a nossa menina', como diziam as tias, 'ai a menina!', ralhava o meu pai, 'sempre a fazer disparates'
 - ai, ai!
calculo que para chamar a atenção, mais do que por ser realmente uma menina disparatada, 
 - mimada!
a menina inesinha, como dizia a Joaquina e ainda diz, vejam lá que ainda me chama,
  - inesinha!
e eu, aqui e agora, já deste tamanho, quarenta anos mais quatro, quando é que algum dia, quando eu era pequena, imaginei poder vir a ser tão crescida?

'quando eu era pequena', na escrita, é sempre a frase que me leva de volta aos lugares mais seguros e às memórias mais doces.  a não ser que o tempo nos amoleça as recordações, como a calda faz com a fruta quando a transforma em compota, e a minha infância não tenha sido, afinal, nem tão feliz nem tão boa. além disso, quando eu era pequena era quando? quando tinha dois anos, três anos, cinco, sete, dez a caminho dos onze? e há quanto tempo foi isso? matematicamente, foi há mais do que trinta, mas a contagem dos anos não é apenas a soma dos dias ou das estações, há que subtrair-lhes as dores e as feridas, multiplicar as assombrações que nunca expulsámos de debaixo da cama, dividir o que um dia quisémos que fosse só nosso pelos irmãos que vieram mais tarde.

quando eu era pequena, aos dois ou três anos, era esta em Fiais. vestido aos quadrados vermelhos e pretos, ainda que o meu pai os fotografasse de acordo com a tecnologia da época, a preto e branco,  portanto, sandálias, cabelo cortado à rapaz e os pinhais todos por  conta. e era feliz, tenho a certeza que era, tenho a certeza que as tias estavam sentadas ali muito perto, sou bem capaz de lhes estar a mostrar o que seja que tenho nas mãos, que tenho ou que tinha, já não sei em que tempo estou afinal, se quando eu era pequena continua a ser hoje ou se foi há mais tempo, em que é que ficamos?

ficamos aqui, nesse caso. aqui e agora, no tempo sem horas e na estação que é sempre a que mais docemente perdura nas minhas memórias. e que apesar de estar retratada em tons de cinzento era cheia do verde do verão e do rumor desbravado e azul dos pinheiros, rendendo-se ao céu. por isso, quando eu era pequena é agora. neste exacto momento em que escrevo, esta sou eu. aqui e agora, eu sou quem eu era quando era pequena. a 'nossa menina', como diziam as tias ou, simplesmente,
  - a menina
tão querida!, provavelmente mimada, é possível, e disparatada
 - ai, ai!
a caber no tamanho que tinha e em todos os sonhos que ainda mantenho.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

das fadas e das magias que fazem

sempre que vou a uma escola falar do Pede um Desejo, há três ou quatro, ou mesmo cinco crianças que logo me avisam, com caras de caso
 olha que eu cá não acredito em fada nenhuma!
há outras que me pedem provas da sua existência, algumas querem saber coisas prosaicas, como o que é que elas comem ao pequeno-almoço ou se também lavam os dentes antes de irem para a cama, há muitas que partilham da minha crença e que dizem, com um brilhozinho nos olhos,
 eu cá acredito e até já vi uma!
no imaginário infantil, as fadas são sempre as fadas dos contos de fadas. as fadas madrinhas da Bela Adormecida, a da Cinderela, a Sininho da Terra do Nunca, as Winx - numa versão mais moderna - e milhares de outras parecidas. 
são sempre brilhantes, com asas, varinhas, pozinhos de perlimpimpim, capazes de transformar desejos em realidades, borralheiras em princesas magníficas, com poderes, dons e bondades que em muito transcendem a humanidade comum. 
quando, então, essas três ou quatro ou mesmo cinco crianças me dizem que não acreditam em fadas - e  que felizmente são sempre a minoria -,  em vez de tentar provar-lhes que as fadas do Pede um Desejo são verdadeiras, eu falo-lhes das 'tias mágicas'. 

as tias mágicas eram minhas tias-avós. nunca casaram e viviam as três, com os meus avós, num casarão em Pedrouços. eram bondosas e mansas, magrinhas, mas com uma largura de colo onde cabíamos todos (e, ao todo, somos dez primos), disponíveis para qualquer emergência ou urgência que pudesse surgir - ficarmos doentes em casa, esfolarmos um cotovelo, precisarmos de quem nos levasse ao ballet, de enxovais para as bonecas, de aprender a coser, de companhia para ir ao jardim - e lembro-me delas sempre a sorrir.
não tinham asas, não tinham varinhas e, em vez de pozinhos de perlimpimpim, costumavam brindar-nos com a sua paciência, infinita, com leite creme queimado por cima, com histórias de quando eram pequenas, com beijos e mimo e tudo o mais que vissem que nos faria crescer e, mesmo assim, continuar a acreditar em magias. 
os seus nomes verdadeiros eram Maria Emília, Maria Helena e Maria Eugénia, mas os seus nomes de fadas eram Mimi, Melé e Mejé, e a presença benigna das três, ao longo das nossas infâncias, trouxe alívios e curas que talvez só muito mais tarde tenhamos, realmente, entendido.
quando a primeira partiu - e que foi uma das gémeas - e pela primeira vez me confrontei com a morte, tinha dezasseis anos. já era um bocadinho crescida, portanto, mas custou-me imenso aceitar que as fadas fossem mortais. a segunda, a Mimi e a mais velha das três, partiu três anos depois e já não me custou assim tanto, pois começava a ser capaz de ver o fio contínuo que liga a Terra e o Céu e, até, de falar com elas quando olhava para as estrelas.
a Mejé viveu muitos anos e só morreu muito velhinha e ainda a vi com os meus dois filhos mais velhos ao colo e apresentei-lhe a Madalena, quando ainda só estava na minha barriga. tinha uma fé que movia montanhas, uma capacidade de aceitar dias de chuva e de sol, sempre com a mesma alegria e nem as extra-sístoles que lhe agoniavam o coração o faziam pulsar longe de nós. 
nos últimos tempos, vivia sozinha no casarão de Pedrouços, mas todos os dias um de nós ia vê-la, retribuíndo assim as magias que tinha feito connosco durante anos a fio e que eram coisas tão simples como as que tinha feito por nós. companhia, um chazinho de tília para o lanche, acompanhá-la à missa ao domingo, dar-lhe o braço para subir as escadas, levá-la a uma praia, a um jardim ou ao teatro, convidá-la para almoçar num restaurante com vista, dar-lhe muitos abraços e muitos beijinhos e fazer com que nunca sentisse que tinha ficado sozinha.
perante as minhas fadas humanas, mesmo as crianças mais cépticas sentem que a magia, afinal, não é exclusiva dos personagens dos livros e, menos ainda, uma mentira que lhes contamos para as fazermos felizes, mas que pode ser qualquer pessoa que até existe nas suas vidas. seja uma tia, uma prima, a professora da escola, a senhora que se sentou ao lado delas no autocarro e que tinha um sorriso maravilhoso, a mãe quando dá beijinhos nas feridas, o pai quando canta, a amiga que empresta os lápis de cor e por aí fora...
sim, é muito importante contar às crianças as histórias das fadas dos contos de fadas, mas mais importante é dizer-lhes que, também elas, são poderosas e muito capazes de fazer grandes magias no mundo. sem asas e sem varinhas e sem pozinhos de perlimpimpim que, isso sim, só existe nos filmes...

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

a 'espiritualidade lindinha'

daqui
a expressão foi 'roubada' ao António e espero que ele não se importe que a use. e a sensação que me dá ao ouvi-la é que temos andado a tratar do nosso espírito - ou alma, ou o que preferirem chamar-lhe - um pouco como quem trata das unhas dos pés, do cabelo, da gordura a mais na barriga, das rugas, dos pêlos e por aí fora. 
a par dos inúmeros institutos de estética que proliferaram um pouco por toda a parte nos últimos anos,  onde vamos cuidar da nossa imagem exterior para ficarmos 'lindinhos' por fora, houve também a proliferação dos 'centros anímicos' - onde vamos tratar da beleza interior, para ficarmos 'lindinhos' por dentro. a oferta é para todos os gostos, todos os géneros e todas as bolsas e contempla um sem fim de técnicas, experiências, vivências e posições. do yoga às massagens, dos tratamentos de reiki às regressões a vidas passadas, dos retiros de silêncio às curas xamânicas, das leituras da aura ao alinhamento dos chakras, das meditações aos círculos de cura, das consultas e cursos de astrologia às palestras sobre os mais variados assuntos, das canalizações ao transe assistido, dos livros de auto-ajuda aos 'manuais de instruções' dos gurus, nunca, como nesta dita 'nova era' nos esforçámos tanto por ser (parecer?) 'lindinhos' por dentro.
mas, afinal, lindos por dentro nós sempre fomos... ou não? lindos e... feios! e é aí que reside o engodo da 'espiritualidade lindinha'. ao prometer-nos mundos e fundos para a alma, exactamente da mesma forma e na mesma medida que a indústria estética promete fundos e mundos para o corpo, o resultado, na maior parte das vezes, é a vivência de uma espiritualidade plástica, asséptica e aquém dos resultados que, neste momento, o universo nos pede para, realmente, ascendermos e elevarmos a humanidade à raça dos anjos.
e isso, pese embora a importância e a influência que cursos, palestras, retiros, livros, encontros, massagens, cristais e etc. e etc. e etc. poderão ter... isso não chega! e não há ninguém neste mundo, a não ser cada um, em silêncio e consigo, quem poderá encontrar a 'receita' para que o seu espírito se manifeste neste tumulto  em que transformámos a Terra.
ainda no outro dia, pasmei perante uma 'lista de regras para a nova era' que vi por aí. fiquei que tempos a tentar perceber o que era que me incomodava naquilo. pode ser uma mera questão de conceitos, mas 'lista' e 'regras' não condizem de todo com o que entendo por 'nova era'. a Era de Aquário, acredito, será uma manifestação de excepções - e as velhas 'listas de regras' um vício caduco da Era de Peixes, em que tentámos impor uns aos outros as nossas meias verdades. acredito, então, que manifestar a excepção  - e o ser excepcional - que cada um de nós É, deixando os 'supostos', as 'regras' e o 'by the book' de lado é a única forma de fazer emergir a espiritualidade de que todos somos dotados.
diz o António que a 'espiritualidade lindinha' tem os dias contados e eu estou de acordo. chega de andar a brincar aos iluminados, exibindo 'egos' que estão tão bem trabalhados que já quase nem damos por eles, curriculos que não têm fim de tanto que já andámos de um lado para o outro a acumular conhecimentos e cursos, asas que - para já - ainda não estão tão abertas como as dos anjos e que apenas nos deixam voar baixinho e em círculos.
a 'espiritualidade lindinha' tem os dias contados porque, primeiro, é necessário sentir, assumir, aceitar, que somos lindos e... feios! e que a luz que emanamos não brilharia se não fossem as sombras, que todos somos também.



domingo, 17 de outubro de 2010

espantar os espíritos

conta-se que ao sétimo dia, criadas que estavam todas as coisas do Céu e da Terra, Deus foi descansar e maravilhar-se com a obra criada. 
porque hoje é domingo, sétimo dia, e eu ando cansada das coisas da Terra, pus-me a pensar como seria possível criar algo que tivesse a ver com o Céu. 
desde o verão que tinha um saco de conchas, apanhadas na praia pela minha filha mais nova, quase todas partidas, porque a Luísa prefere as conchas partidas às outras perfeitas, inteiras
  coitadas, mãe, estas também têm direito e quase ninguém gosta delas e eu tenho pena, sabias?
e outro saco com paus de pinheiro, também apanhados no verão, mas por mim e no campo. hoje, domingo, dia do descanso de Deus e dia de os homens espantarem cansaços acumulados durante a semana, peguei nos paus e nas conchas e convidei as minhas filhas mais novas para espantarmos os espíritos que sentia rondarem-me. a Madalena estava amuada e não quis, mas a Luísa concordou de imediato e então fomos lá abaixo, ao chinês que nunca descansa e que não sei se partilha da história do sétimo dia e das coisas criadas por Deus no Céu e na Terra, mas que tem sempre um sorriso nos lábios e que nos vendeu prontamente um rolo de corda por noventa cêntimos. depois foi só montar a bancada, pegar no black&decker para furar o pau e as conchas e deitar mãos à obra.
à medida que as ia furando, os maus espíritos iam partindo e sentia que os bons iam chegando. lembrei-me então de umas contas de vidro que tinha guardadas - e essas não sei de onde vieram - e fui buscá-las e a Luísinha ajudava-me a ajustar a bancada à medida das conchas e proibi-a de mexer no berbequim e a Madalena continuava amuada, deitada na rede, e de vez em quando espreitava-nos para dizer
  isso está a ficar mesmo mal.
a seguir, foi enfiar a corda nos buraquinhos do pau, depois as conchas, as contas e os espíritos - maus - espantando-se com a criação de tanta simplicidade, no dia que Deus reservou ao descanso. quando a obra ficou acabada, a Luísa quis ir mostrá-la à Francisca - a mana mais velha - que disse
 boa, ficou mesmo querido.
e então pendurámos o espanta-espíritos ao alcance do sol e tirámos uma fotografia e depois fomos pô-lo onde, a partir de hoje, vai ficar, numa parede do hall da entrada. pode ser que, assim, os espíritos maus não se atrevam mais a entrar cá em casa... ou, pelo menos, que não o façam com tanto à vontade...

sábado, 16 de outubro de 2010

e das preces que fazemos

nos altares dentro de nós 




onde nada nos é estranho nem alheio.
onde não pedimos nada
mas apenas oferecemos.

das preces que fazemos

nos altares fora de nós, 


como se as pedras e as conchas e até a própria areia
nos fossem estranhas e alheias
  como se o Deus a quem pedimos que ilumine as nossas estradas
fosse outro que não nós
nós inteiros debruçados sobre a nossa própria alma
pedindo dons que afinal sempre tivémos
e que esperam 
simplesmente
que ao mundo os revelemos.


lume brando


o sonho do granito arde à sombra dos pinheiros e o corpo aquece 
quando o estendo sobre as pedras da infância
e o entrego à acalmia dos poentes
como se no céu se acendesse uma fogueira
e o lume brando no teu peito
resgatasse a urgência do silêncio.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

'morrer e renascer'

há vários critérios objectivos que fazem de um livro um 'bom' livro. a qualidade da escrita, a originalidade da história, a construção e consistência dos seus personagens e a forma como se encadeia a narrativa são apenas alguns. e, no entanto, são os motivos subjectivos que nos fazem gostar mais ou menos de um livro. 
gostei mais - leia-se muito! - deste último livro da Maria José Costa Félix. é um livro intimista, quase todo ele contado na primeira pessoa singular de uma mulher que já foi jornalista, que é astróloga e escritora, mãe, avó e, sim, minha amiga. mas nem foi por nada disso que gostei tanto do livro. 
gostei porque, mesmo contado na primeira pessoa, o livro fala de nós. de todos nós que, ao longo desta viagem humana, vamos constantemente morrendo e renascendo para a vida e preparando, dessa forma, o nosso regresso à eternidade. gostei porque é um livro forte, onde as fragilidades ficam à mostra. porque é um livro desassombrado, que desmonta os fantasmas e as assombrações do passado ou da infância ou de onde quer que nos espreitem. porque é um livro claro, que aponta para 'a noite escura da alma'. porque é um livro simples, que nos explica porque somos, afinal, tão complicados. porque é um livro aberto, que não nos deixa mais fechar a porta a tudo o que não queremos ver nem saber. porque é um livro vivo, que nos fala da morte. 
um livro, acabado de nascer e de chegar às livrarias, que nos convida a renascer, a nós também, das nossas cinzas. dos fins doridos e comuns das relações, dos dias tristes, das ausências dos amigos, da solidão das estações frias, das tantas feridas a que a nossa carne é exposta, dos buracos que parecem sem saída e das saudades com que os 'mortos' nos deixaram. 
um livro obrigatório, que afinal não nos obriga a nada senão isto: revirarmo-nos por dentro e sentir onde é que ainda permitimos não nos tornarmos no que realmente somos: seres divinos a viajar por esta terra, humanamente trajados - e tantas vezes artilhados - para experienciar caminhos, mas animicamente dotados da mesma essência de Deus.
 

beijos e bjs

a virtualidade tem destas coisas: em vez de andarmos aos beijos, andamos aos bjs. mas, passe o jeito que dá abreviarmos palavras, saudades ou despedidas, bjs não são beijos. bjs são inodores e não sabem a nada, ao contrário dos beijos, que trazem dentro os sabores e os cheiros de quem os troca entre si. bjs são três letras que, foneticamente, soam esquisitas, beijos são sons e, tantas vezes, fundos suspiros. bjs são à pressa, beijos são demorarmo-nos na pele uns dos outros. bjs são trocas às cegas, beijos são partilhas às claras. bjs são indiferenciados, beijos são no rosto, na testa, nas mãos, na polpa dos dedos, nas curvas do corpo ou onde quer que a nossa boca os ofereça ou procure. bjs são abreviações, beijos são tantas vezes uma imensa extensão de prazer. bjs são inanimados, beijos animam-nos. bjs são impessoais, beijos transmitem-se e contagiam-nos. bjs são meros disparos das teclas do telemóvel ou do computador, beijos são acertarmos na respiração um do outro. bjs são uma invenção da modernidade e da tecnologia, beijos são a própria espécie, na sua origem, manifestando o amor.  



daqui


terça-feira, 12 de outubro de 2010

- posso ligar-te para aqui?

reconheci, sem esforço nenhum, a voz do meu técnico do outro lado do fio.
 - poder, podes - disse-lhe então - mas já contei a toda a gente que tu não existes...
fez-se silêncio e não ouvi nada a não ser a respiração de um poeta que, naturalmente, rimava com o vento de outono e até com a relva, no mesmo tom manso e verdejante da primavera, como se as duas estações se sobrepusessem e fosse possível eu estar a morrer e a renascer no mesmo momento.
 - ah contaste? - perguntou ele nessa altura.
agora já não respirava, sorria-me apenas como quem sabe, e há já muito tempo, que ponho e disponho da sua existência, conforme me dá na cabeça. 
mas mantive-me firme.
 - contei... contei que era tudo mentira e que estas conversas que tu tens comigo não são mais do que pura invenção. um álibi para a escrita, percebes?
calculo que tenha achado engraçada a minha desculpa, pois deu uma gargalhada tão alta que me fez recuar.
 - muito gostas tu de fugir - e aproximou a sua voz, ainda com ecos de gargalhada no timbre, do meu coração. 
batia tão alto que achei que ia saltar-me do peito e que, logo a seguir, eu morria. 
 - e muito gostas tu, também, de morrer...
foi a minha vez de ficar em silêncio. mas, ao contrário de mim, ele não se atrapalha quando eu fico em silêncio, não sei se ouvirá o vento de cada vez que eu respiro, se do jardim de onde me liga já é primavera, se o outono, para os poetas, terá o aroma das folhas mortas que tem para mim. como se pudesse ouvir-me a pensar, o técnico interrompeu-me:
 - pois fica sabendo que aqui é sempre verão. e que inês-xistir não é estação para ninguém e muito menos para ti. 
a evocação da inês-xistência que há anos me espreita fez-me supor que ele mentia e que o inverno estaria para breve.
 - o inverno é apenas o medo do frio. o pavor de que a neve congele os teus gestos, o cinzento a cair rente à tua janela e tu sem vista para o sol. a estação onde as noites são longas, tão longas que te fazem crer que a escuridão se abateu sobre a terra.
era só uma provocação e, por isso, não respondi. em vez disso, olhei lá para fora e de novo para a relva, achei que talvez estivesse na altura de pôr termo à conversa, mas ele impediu-me de golpear este fio que nos une, de cortar a ligação que é de sempre, de entupir o canal ou até de interferir na frequência.
 - és mesmo teimosa! - e riu-se outra vez muito alto e o seu riso era outra vez um poema que rimava com tudo o que existe no mundo. depois voltou ao assunto que tinha dado início à nossa conversa.
 - contar a toda a gente que eu não existo... isso sim, minha querida, é uma grande mentira! arranja  lá os álibis que quiseres para a tua escrita, mas nunca mais digas que eu não existo. se eu não existisse, de facto, o que seria de ti?
estive quase a responder-lhe que seria na mesma muito feliz e talvez até mais tranquila e que esta coisa de ter a voz dele dentro de mim só me trazia problemas e muitas dúvidas que nem sempre sou capaz de gerir e que era muito melhor se ele voltasse lá para o mundo dos técnicos onde, tecnicamente, a perfeição é possível e que, definitivamente, não me ligasse para aqui nunca mais... e, no entanto,  em voz alta, só fui capaz de lhe pedir:
 - deixa-me em paz!
e só então percebi que é isso mesmo que ele faz.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

mããããããe!




reconhece esta voz? este grito? o tom de urgência vindo não se sabe bem de onde que se repete e se estende e ecoa por todos os cantos da casa?
 - mããããããe!
tão insistente que nem sequer dá para nos fazermos de distraídas? de surdas? de parvas?
 - já vou!
- não grites!
- mas o que é agora?
agora - e sempre! - é sempre uma coisa qualquer. fome. sede. sono. chichi. um puxão de cabelos. um brinquedo partido. um pico no pé. uma turra. um desenho rasgado. medo do escuro. uma abelha que entrou pela janela e pousou em cima da cama. um dente a abanar.
 - mããããããe!
 - o que foi?
uma barbie que perdeu a cabeça numa guerra de irmãos. uma tartaruga ninja mutilada pelo primo mais velho. um copo entornado no chão da cozinha. os olhos cheios de champô. um joelho esfolado. um ataque de fúria. um prenúncio de birra. um capricho.
 - ó mããããããe!
a urgência sobe de tom, parece que trepa pelas paredes acima...
 - já vou!
- espera aí!
- mas o que é que se passa contigo?
um dedo entalado na porta do quarto. uma teia de aranha no tecto. um arranhão de nada na perna. um comando de vídeo sem pilhas. um fantasma debaixo da cama. cansaço.
 - mããããããe!
 - diz lá, o que é?
e, então, seja o que for, depois passa, a voz baixa de tom, a casa volta a ficar em silêncio, o nosso nome fica mais curto e mais doce, estamos mais perto.
 - mãin...
 - sim?
e é quando nos saltam para os braços e se enroscam no colo.
 - ó mããiin...
 - diz lá, o que é?
e é mimo. ou também pode ser manha. é bom de qualquer maneira. quando se encostam e ficam molinhos e nos pedem para contar uma história ou nos contam o que fizeram na escola. quando partilham segredos, migalhas, berlindes. quando a urgência, afinal, é só de um afago, de uma festa, de um mimo, de um sinal inequívoco da nossa presença.
 - mãe...
num timbre tão meigo que nos faz ceder aos caprichos. perdoar as ofensas. subestimar o copo de leite entornado no chão da cozinha. ficar meia hora a tentar consertar a ninja desfeita. caçar os fantasmas debaixo da cama. enxotar a aranha ou a abelha ou a mosca que se atreveu a deitar-se na cama. ir à procura de pilhas. jurar que a fada dos dentes existe. pôr betadine na ferida.
 - estás a ver? não é nada...
deitá-los, aconchegar os lençóis até ao pescoço, contar uma história, fazer cóceguinhas nas costas, esperar que adormeçam e, mesmo assim, até dentro dos sonhos, ouvi-los constantemente a chamar.
 - mããããããe!
ouvi-los, desde bebés, a treinar o som debaixo da língua.
 - mamãmãmã....
e nós aprendendo com eles a entoar o amor.
 - mamãmãmã....
crescendo com eles à medida das sílabas.
 - ma... mã!
deixamos de ter nome próprio para sermos apenas as mães. as mamãs. as mãezinhas. deixamos de ter liberdade, tempo, sossego, paciência
 - mããããããããããe!
e volta tudo ao princípio.
 - diz lá?
- o que é?
apenas as mesmas coisas de sempre. consolas estragadas, pulseiras partidas. dores de barriga. ataques de fúria. sono. fome. cansaço. trabalhos de casa. a bola que foi parar ao jardim do vizinho. a casa de banho inundada. o nariz entupido. os pés enregelados. uma saia que deixou de servir.
 - mããããeeee!
coisas diferentes a cada dia que passa e um dia notamos que mudaram de voz e cresceram, embora nos chamem com a mesma urgência de sempre.
 - mããããããe!
 - diz lá?
- o que é?
uma borbulha no queixo. um top fora de moda. roupa espalhada. trancarem-se na casa de banho. pêlos a nascerem debaixo dos braços. um teste no dia seguinte. o volume da aparelhagem no máximo. humores que mudam da noite para o dia. angústias. histerismo. mensagens cifradas."od e k a mae tá?" saídas à noite. vaipes. ressacas.
 - mããããããe!
um estado hormonal em mudança, um tom que se ajusta, um crescimento em conjunto e tudo o mais que houver para partilhar e sentir.
 - mããããããe!
e nem sequer é um nome.
 - mãe.
mas um chamamento interior.




quarta-feira, 6 de outubro de 2010

sabes?

(eu sei que tu sabes)

no Domingo passado, quando escrevi que nunca mais voltei à Capela do Rato, estava a mentir. de facto, voltámos lá os dois em Abril, a clarabóia no tecto era a mesma, estava um dia de sol e a luz era a pique que entrava por ela, não nos sentámos nos degraus do altar, mas nos lugares das pessoas crescidas. foi um alívio tão grande ver que, em vez do Cristo pregado na cruz, havia agora um paínel com uma pintura de flores e que a viola do Pepe era a mesma e que ambos sabíamos, ainda, as canções, e foi bom termos estado os dois de mão dada, durante a homilia que já não me lembro do que foi que falou, mas que calculo que fosse inspirada, como as homilias do Pe Alberto. 

a seguir fomos para casa e deitei-me na relva...

hoje voltei a sentir esse milagre de haver amor e bondade no mundo, ainda que nem sempre saibamos como é que ele se dá, nem como, nem onde. mas voltei a senti-lo, esse milagre do pão e do vinho que se transformam no corpo e no sangue de Cristo, voltei a sentir-te na minha carne e que estamos unidos em espírito.
onde é que isso nos pode levar ainda não sei. como te disse outro dia, não prevejo um cais de chegada - nem para nós, nem para ninguém nesta Terra - onde um dia atracamos o barco e para sempre ficamos a salvo das tempestades do mar, mas uma rota que vamos traçando ao sabor de marés e correntes. pode até ser que, um dia, o meu barco rume para norte e o teu se aventure a caminho do sul e, mesmo assim, o céu debaixo do qual navegamos seja um só e o mesmo, pintado de azul ou de outra cor que no momento possa compor a paisagem mais certa.
pode ser tudo e tu sabes. pode ser nada, e também sabes. sabes, até, que aquela história, de três capítulos, de eu ter metade da tua idade e tu o dobro da minha e de nos sentarmos os dois, nessa altura, nos degraus do altar da Capela do Rato foi um só 'romance' de escrita.
a verdade é que a nossa história se vai inscrevendo dentro de nós e revelando o silêncio que nenhuma palavra sabe dizer.

é por isso em silêncio que hoje agradeço - de novo - esta fé de que não há como não crer na alegria benigna da luz, não há como não querer a redenção natural de todos os seres através do amor.

mandala do coração

foi precisamente depois de uma conversa com um querido 'pombo-correio', que ofereci esta mandala feita de conchas, pedras, penas e algas, ao céu, à praia e aos anjos.



expressão da gratidão e do amor que nesse dia senti, o tempo que levei a fazê-la passou-se - tive a sensação - fora do tempo do mundo e, enquanto a fazia, cantei sempre a mesma canção, que é para mim como um mantra de poder e abertura do chakra do coração.

Ábrete corazón
Ábrete sentimiento
Ábrete entendimiento
Deja a un lado la razón
Y deja brillar el sol
Escondido en tu interior

Ábrete memoria antigua
Escondida en la Tierra
En las plantas, en el aire
Recuerda lo que aprendiste
Bajo agua, bajo fuego
Hace ya,
Ya mucho tiempo

Ya es hora sí, ya es hora
Abre la mente y recuerda
Cómo el espíritu cura
Cómo el amor sana
Cómo el árbol florece
Y la vida perdura …

(Rosa Giove)


teria ficado para sempre, apenas e só, uma mandala de pedras, penas, conchas e algas, que a maré cheia levaria com ela mais tarde, se não tivesse existido ninguém que a 'fixasse' nesta fotografia a cores... o que me faz crer que estou certa, quando sinto que somos elos de uma mesma cadeia e que, juntos, partilhamos a criação para que a poesia que somos se espalhe...

ao longo dos últimos tempos,

tenho sentido que os meus guias procuram, 'desesperados', alguém que lhes possa servir de 'pombo-correio' e me traduza, em linguagem humana, as suas mensagens celestes. 'desesperados' propositadamente entre aspas, pois se há sentimento que sinto que os guias não têm é desespero... mas calculo que se sintam, de alguma forma, impotentes e um pouco cansados... pelo tanto que me têm soprado para dentro, e eu sempre fingindo que os sopros são, simplesmente, os tais 'distúrbios de personalidade' de que falei no meu último 'post'. vozes às quais não dou a importância devida, mas que apenas copio para a escrita, talvez por sentir que não sou merecedora de ouvir os sopros do céu...

sim, tenho andado confusa...
mais frágil do que é costume, ou então cedendo apenas à fragilidade que sempre existiu e que faz parte de mim, mas que vou tentando esconder. há anos que construo armaduras para poder ir à luta sem correr riscos. coletes de ferro que sobreponho no peito, poços de lacrimosas que seco e toda uma série de artilharia pesada que - acho eu, iludindo-me - me vão defender dos 'golpes mortais' que a minha humanidade, por ser toda ela feita de carne, convoca.
sobretudo desde a morte do Pyppo - pai dos meus filhos mais velhos - que me auto-convenço que a minha força é proprocional à teimosia com que resisto a deixar-me levar pela dor e a mergulhar no meu poço de lágrimas. os guias soprando-me a rendição e eu, teimosamente, encontrando desculpas e formúlas para resistir ao seu sopro divino. chego mesmo a sentir que, muito antes da morte do Pyppo, já eu me tinha tornado numa 'resistente profissional' e que 'perdê-lo' foi apenas mais um sinal do que posso ter a ganhar, assim que baixar as minhas defesas e me render...

felizmente, eles nunca desistem - a não ser, imagino, no dia em que sentirem que eu desisti de mim mesma e que escolhi viver o resto da minha vida sem eles - o que também pode ser uma escolha... 
feliz - e agora tentando deixar a mente de fora desta 'conversa' -, apesar de todas as perdas, de todas as feridas, de todas as dores, de tantas vezes de me ter sentido humanamente incapaz de praticar o que a minha alma revela, apesar de ainda activar a minha armadura de ferro sempre que sinto uma seta a caminho do peito e disposta a furar-me as extensas superfícies de pele de que também sou feita, eu não desisti de mim mesma nem de cumprir-me em tudo aquilo a que me propus, quando escolhi ser a Inês, nesta vida.

e por isso hoje agradeço, não só aos meus guias, mas a todos os pombos-correio que - talvez sem darem por isso - me vão traduzindo, em linguagem humana, os seus sopros divinos. 

a mortalidade comum que todos nós transportamos transpõe-se quando sentimos ser elos de uma mesma cadeia e co-criadores deste universo infinito. e se a língua dos anjos é vento, murmúrio de mar, barulho de chuva a cair, estalido de fogo, canção de seara, bulício de campo, alvoroço de terra, a nós foi-nos dado o dom da palavra. para que possamos exprimir, e transmitir uns aos outros, a poesia da criação e as várias formas de rimarmos com ela.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

a primeira vez que 'falei' com ele ao telefone

a conversa foi esta.
o 'técnico' apareceu-me do nada ou, se quiser dizer mesmo a verdade, desta minha tendência  - vício? mania? capacidade? esquizofrenia? - para inventar personagens dentro de mim. não há originalidade nenhuma neste desdobramento de um ser em várias vozes que, afinal, chegam dos seus vários 'cantos'. para citar apenas um caso, lembro Fernando Pessoa. 
até que ponto isso é bom ou mau, certo ou errado, construtivo ou elucidativo daquilo que os manuais de psiquiatria designam, genericamente, por 'distúrbios da personalidade', não sei. nem me interessa lá muito saber. analisar os porquês, os porque nãos ou os porque sins deixa-nos sempre perante a irrefutável agonia da dúvida. interessa-me mais, neste caso, perguntar-me: para quê?

a primeira vez que me dei conta de ser assim - não uma, mas várias - era muito pequena. a Lucibel, que mais tarde acabou por se tornar, primeiro num personagem que levei para a ilha e, depois, numa fada alegre e bondosa que contava quartos de luz na beira de um lago, está comigo, diria que desde os cinco ou seis anos. lembro-me de falar nela aos meus pais e de eles me olharem com aquele ar de quem não sabe o que fazer com uma filha 'meia tontinha', ou então de me dizerem para parar de inventar, ou mesmo de me acusarem
 tens a mania que és engraçadinha, não é?
ao longo da minha infância, a Lucibel era mais uma sombra do que uma luz, responsável pelas minhas asneiras, autora dos meus disparates, alguém que tomava conta de mim e que era um bom álibi sempre que eu não conseguia ser 'boa'. por exemplo, quando a minha mãe entrava no quarto e via tudo espalhado, desarrumado, e me ralhava, eu explicava
 não fui eu, foi a Lucibel.
ou quando batia nos meus irmãos
 foi a Lucibel 
quando abria as torneiras da casa de banho e deixava tudo inundado
 foi a Lucibel
quando dizia mentiras, a responsável era sempre a pobre da Lucibel.

foi durante a adolescência que os papéis se inverteram: ela passou a ser a boa e eu a má. não sei explicar como foi que o processo se deu, mas a adolescência é sempre um campo minado para a auto imagem e, por isso, o que eu me via a ser por fora - desengonçada, com a pele a regurgitar pontos negros, as hormonas descontroladas e uma série de outros desassossegos - não condizia com aquilo que sentia ter dentro de mim. a tal bondade de que o Pe Alberto falava, a essência tapada pela matéria, a primordial luz da alma. a Lucibel passou, então, a ser uma espécie de Anjo da Guarda. em vez de a culpar pelas minhas asneiras, pedia-lhe que me ajudasse a evitá-las. em vez de a acusar das minhas fragilidades, evocava-a para que me fortalecesse. em vez de me desculpar com a sua existência, agarrava-me à sua presença para me poder perdoar a mim mesma. 
fui crescendo e esta tendência - vicío? mania? capacidade? esquizofrenia? -  de me re-inventar a ser outras não esmoreceu, pelo contrário. foi ganhando contornos - por vezes de paranóia total e desconsolo por não conseguir perceber, afinal, quem sou Eu?
por outro lado, sinto hoje que esse desdobramento me tem trazido para mais perto de um único Eu - com todas as contradições que co-habitam, não só em mim, mas em todos os seres. e as conversas 'telefónicas' com o 'meu' técnico, a título de exemplo, foram, ao longo dos últimos meses, fundamentais para sentir que, sempre que invento alguém para falar comigo de fora, não estou a ser mais do que um canal para que os meus guias se possam exprimir na linguagem humana que falo. ou seja, não são máscaras para me esconder de mim mesma, não sou esquizofrénica e tenho aprendido mais sobre mim mesma quando me ponho à conversa com elas, do que quando as mando calar para que não me falem do que também sou, mas que ainda não gosto de ser.




domingo, 3 de outubro de 2010

hoje chovo

daqui
não sei quem foi que inventou que chover é um daqueles verbos intransitivos, impossíveis de conjugar na primeira - ou em qualquer outra - pessoa. eu hoje chovo e não me interessa a gramática. chovo como chove lá fora, com a mesma cadência da água que o céu nos envia, o mesmo murmúrio de pingo, até o cinzento da mancha é o mesmo que vejo a cair sobre a relva, a humidade rasa-me a pele, sou molhada dos pés à cabeça.
chover e chorar são coisas diferentes e é por isso que digo que
 hoje chovo.
ontem chorei, é verdade, mas hoje chovo como um verdadeiro dia de outono que sente o vento a libertá-lo das folhas mortas das árvores, deixando que os ramos despidos revelem a sua nudez.
talvez já me prepare para o inverno, ou então é apenas a liquidez do amor a tomar conta de mim e não há nenhum desespero nessa entrega.
apenas a confirmação de que passamos pelas estações, aceitando não só o que cada uma nos traz, mas também o que (nos) leva.

aos domingos,

quando eu era pequena, os meus pais levavam-me à Capela do Rato. eles ocupavam os lugares dos crescidos e eu ficava sentada debaixo do altar, a ouvir a viola do Pepe e as homilias do Pe Alberto, que eram sempre inspiradas. 
eram missas felizes, com toda a gente a cantar
 'porque eu sou a Vida, porque eu sou o Amor'
a luz entrava pela abóbada envidraçada do tecto e a única imagem que me afligia era a do Cristo na Cruz, com a cabeça pendendo e o sangue escorrendo das feridas pregadas nos pés e nos punhos. o sofrimento daquele Jesus não condizia com a alegria que eu sentia a cantar, nem com o menino que, na Catequese, me tinham mostrado a nascer numa cama de palha, debaixo da estrela mais luminosa do céu.
nunca mais voltei à Capela do Rato e o Pe Alberto foi morto, há muitos anos, com um tiro na cabeça. nunca ninguém soube porquê ou, se o soube, nunca contou.
baptizou-me tinha eu pouco mais do que um mês, mas por si só a água benta não servia de muito, não há água que nos transforme em pessoas de fé, por muito benzida que esteja. já a graça divina do espírito é outra energia e foi esse o milagre que o Pe Alberto me trouxe, poupando-me aos dogmas e às contradições da Igreja e ensinando-me apenas a ser filha de Deus.
com a simplicidade que lhe era própria, mostrou-me a graça e a fé, essa esperança de crer que reina uma alegria benigna no mundo e de eu tanto poder chamar-lhe Deus como de dar-lhe outro nome qualquer. o que importava, acima de tudo, era ser verdadeira e bondosa. e se a luz interior brilhasse em consonância com a que chegava directamente do céu, não era preciso mais nada.

penitências, pecados, genuflexões e confessionários eram apenas para as pessoas crescidas. para as crianças, o Pe Alberto reservava as canções e o espanto, a certeza de que Deus não castiga ninguém, a redenção natural pelo amor.

e por isso guardava os degraus debaixo do altar da Capela do Rato para, aos domingos, nos sentarmos em fila, de pernas cruzadas. por isso guardava um dia de Verão, em Agosto, para a sardinhada na Caparica, a broa e o Dão do almoço para comungarmos mais tarde, e guardava ainda uma noite de Outono, em Novembro, em que vinha jantar para comemorarmos o meu baptismo e a graça divina do espírito era assim renovada, ano após ano. mais tarde, na adolescência, quando me dediquei às blasfémias próprias do transtorno hormonal e o confrontava com a inexistência de Deus, o Pe Alberto sorria e dizia
 chama-Lhe o que quiseres, minha filha, mas nunca renegues o Seu amor.

a Igreja impingia-me um credo em que o criador do céu e da terra descia dos Céus e incarnava no seio da Virgem Maria para nos redimir dos pecados. ou, nos casos em que isso não era possível, para nos mandar para o inferno expurgar culpas, maldades e vícios. e era precisamente perante esta impossibilidade de todos os corpos conterem o milagre do espírito que eu hesitava e lhe dizia
 ou somos todos filhos de Deus, ou então isto não faz sentido nenhum.
ele voltava então a sorrir - tinha um sorriso amplo e benigno, o Pe Alberto - e apontava-me o céu. uma mancha imensa de azul, nesse tal dia Verão em que vinha à Caparica, e os dois deitados de costas na areia a abarcá-lo não só com os olhos, mas sobretudo a trazê-lo para dentro do peito. 
a seguir era o almoço, as sardinhas, a broa e o Dão consagrados no corpo e no sangue de Cristo, a viola, as canções, a comunhão do amor e Deus sempre connosco, na mancha de azul, no pão e no vinho, mas sobretudo no peito, onde a fé incarnava e nos oferecia o milagre do espírito, habitante do corpo. e foi graças ao Pe Alberto que aprendi que Deus é de facto muito maior do que todos os credos do mundo e que não há como negá-Lo. não há como não crer na alegria benigna da luz, não há como não querer a redenção natural de todos os seres através do amor.

lembro-me, como se fosse hoje, da última vez que nos vimos... e quando, poucos dias mais tarde, soube que o tinham matado, questionei, afinal, a bondade do Deus em que acreditávamos ambos. dei voltas e voltas para tentar descobrir a razão da morte brutal e injusta de um homem da paz e do bem. e, embora nunca tenha encontrado a resposta, hoje tenho a certeza de que ele a soube. no exacto momento em que a bala lhe entrou pela testa, ele soube porquê, soube porque morria daquela maneira e por que razão a dor se esvaía logo à entrada do céu, onde Deus esperava por ele, tenho a certeza, de braços abertos.

e porque hoje é Domingo, deixo-vos um excerto de uma homilia, proferida pelo Pe Alberto, há muitos anos atrás.

'Os santos morrem assim. Sabem porque é que eles morrem assim? Porque vivem assim, e não assado. E nós vivemos assado, e morremos assim. Morremos cheios de medo, de pavor, de aflições, de complicações. Vamos buscar os pecados que fizemos ainda aos 6 anos e já temos 60. Chamamos lá o senhor padre, sabem porquê? Porque não vivemos assim. Ah, se nós vivêssemos assim, Deus recebia-nos com a mão direita na cabeça e entregava-nos, lá onde estão os justos!'

sábado, 2 de outubro de 2010

era tarde quando chegámos a casa

mas nenhum dos dois tinha sono.
abri-lhe a espreguiçadeira no meio do terraço e estendi-lhe uma manta, para o defender do ar fresco da noite, que teimava em insinuar-se nas cartilagens macias.
que farsa!
sorriu-me o anjo, já instalado no seu trono de verga, por debaixo das bunganvílias que tínhamos posto os dois a crescer em vasos de barro, fazia já algum tempo, e a seguir pediu-me um copo de vinho.
fui buscar a garrafa e brindámos
à morte do anjo
disse ele.
as suas asas guardavam ainda a salmoura das ondas, à tona das penas a areia brilhava, um fino vapor cobria-lhe os olhos, o azul mareava-lhe as pálpebras, reparei que pendurara uma concha ao pescoço, presa ao fio dos meus dias, e que nada na sua brancura fora tomado pelas sombras terrestres.
pediu-me para ler o meu texto e mostrei-lho.
que pena não ser capaz de escrever
disse o meu anjo da guarda.
enchi-lhe o copo outra vez e de novo brindámos à farsa
tchim tchim!
a seguir, perguntei-lhe
porquê?
porque queria sentir, como tu sentes, a humanidade a escorregar-me dos dedos e perceber o porquê das paisagens e das metáforas que cria
disse ele.
fez-se um breve silêncio entre nós, bebemos os dois mais um pouco de vinho, a seguir perguntou-me
tens a noção da quantidade de enganos que as palavras convocam?
assenti, com um ligeiro aceno das mãos.
deixa-me lá ler isso outra vez...
abri-lhe a janela e de novo o deixei à mercê da praia mortal, da multidão e das câmaras, do suor das palavras, da repórter excitada com a notícia da morte de um anjo em directo, da orla humana do mundo, do ónus da prova.
imagina que eu tinha mesmo morrido? o que farias sem mim?
perguntou-me, com alguma ironia.
foi a minha vez de sorrir.
nenhuma das minhas palavras seria capaz de te matar
respondi.
a seguir, pousei o meu copo de vinho no chão, fechei a janela, empurrei-lhe a espreguiçadeira para mais perto das estrelas e deitei-me ao seu lado.
quando estávamos quase a dormir, embalados pelo contágio do céu, perguntou-me
diz a verdade, alguma vez duvidaste da minha existência?
por debaixo da manta, estendi-lhe os meus dedos. benignamente, o meu anjo da guarda amparou-os na luz da sua presença, enquanto eu lhe sussurrava ao ouvido
não, mas todos os dias duvido que seja possível escrever o que aprendo contigo.