domingo, 13 de novembro de 2011

os homens têm asas




disse-lhe o anjo.
a ele doíam-lhe os ombros, as costas, os braços, mudava a posição do sono de um lado para o outro e do outro para o mesmo e a noite assombrava-lhe o voo. pesavam-lhe as pálpebras e o sal condensava-se, de cada vez que o mar alto vinha bater-lhe nos ossos, pressagiando naufrágios, margem nenhuma onde pudesse atracar o peito, o navio, descansar, pisar terra firme, o horizonte tão longe da vista
só podes estar a brincar
e afastou o anjo do sonho.
não era sequer madrugada quando o ouviu repetir
têm asas, os homens, e voam!
o vento assobiava lá fora e a tempestade das estrelas era engolida e chovia, choviam-lhe tanto esses olhos que a cor do mar assombrava quando o céu fugia para longe, esquecia-os fechados, azuis, dormia evitando o brilho da luz, prisioneiro dos fantasmas que de repente irrompiam das ondas, e de novo afastou o anjo do sonho e virou-se, de um lado para o outro, do outro para o mesmo, doía-lhe tudo tão fundo
só podes estar a mentir.
amanheciam as cinzas, que não eram mais do que deus brincando ao jogo da luz e das sombras, quando o anjo, mais uma vez e mais perto, insistiu
vejo-as nascendo nas tuas costas
e tocou-lhe ao de leve nos ombros, tocou-lhe nos braços, tocou-lhe no peito, o murmúrio do mar azulou-se nas pontas dos dedos, as ondas beijavam-lhe as margens do corpo, o grande navio parecia-lhe agora muito mais leve, navegando à bolina do vento que tinha amainado, as estrelas tinham descido do céu para lhe iluminarem o dia, ao seu lado o anjo sorria
tudo o que tens de fazer é abri-las.
que não, que não queria. não cria, no fundo era isso. e tantos abismos se ousasse, a vertigem da queda presente quando, ainda menino, se aventurava nos precipícios e se estatelava no chão, as feridas abertas sangrando ao relento, o sol derretendo os sonhos de cera dos homens quando se armavam em deuses
por que razão seria diferente comigo?
limpa, tão limpa, varrida das cinzas, do medo, a luz tomava agora conta de tudo. das costas, dos ombros, dos braços, dos dedos, nos olhos abertos o mar desaguava em dois lagos azuis e talvez, talvez fosse verdade que lhe nasciam asas no peito, ouvia o pulsar, o rumor, a cadência do voo razando-lhe o corpo, o despertar do sono mortal, qualquer coisa a estalar debaixo da pele e o anjo amparou-o
não tenhas medo, prometo que não vais cair!
e já era tarde, já era de tarde quando rompeu finalmente a fronteira da carne e subiu ao poente, que derramava sobre ele as bençãos do ouro e da liberdade dos que ousam ser anjos na terra.


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